Preocupados com os efeitos nas crianças e adolescentes do longo período em que as escolas estão fechadas, um grupo de médicos de São Paulo lançou uma campanha de volta às aulas, eles dizem que há cada vez mais evidências de que não há porque mantê-las assim.
“Queríamos levar o debate para o nível científico e informar a população, gestores públicos e outros médicos sobre a possibilidade da reabertura das escolas”, diz a infectopediatra Luciana Becker Mau, uma das idealizadoras do programa Ciência Pela Escola.
Eles lançaram mão de um manifesto, que reúne uma série de estudos, para defender que as aulas presenciais podem ser feitas de forma segura com algumas medidas.
“A ideia é sair do plano de pensar em reabrir as escolas para pensar como fazer isso”, afirma Mau.
Até agora, o documento já teve quase 8 mil assinaturas, inclusive de 2,8 mil médicos, entre eles mais de 1 mil pediatras, dizem os organizadores.
Os médicos do grupo também se mobilizam na internet. “Estou nessa luta há vários meses, fazendo lives e tentando mostrar que a saúde da criança tem que ser pensada de forma mais completa”, diz o pediatra Paulo Telles.
O vídeo em sua conta no Instagram no qual ele fala sobre o manifesto já teve quase 600 mil visualizações.
“Não tem justificativa para as escolas ficarem fechadas. Basta um pouco de investimento e priorização”, defende Telles.
Mobilização crescente (e controversa)
O Ciência Pela Escola faz parte de uma mobilização crescente de médicos que argumentam ser possível retomar as aulas presenciais.
Um grupo de pediatras do Rio de Janeiro lançou uma campanha paralela, a Lugar de Criança é Na Escola, e defende que “as consequências serão catastróficas para crianças, famílias e sociedade” se as escolas continuarem fechadas no próximo ano.
O Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e a Sociedade de Pediatria de São Paulo dizem desde o final de agosto que dá para fazer uma retomada gradual seguindo alguns protocolos.
“Além de não ter motivo para restringir a escola, temos que ver o outro lado: o quanto as crianças estão sendo prejudicadas por não ir à escola”, diz o infectopediatra Marcelo Otsuka, que assina o documento em que o Cremesp defende a volta às escolas.
Mas nem todos os médicos concordam que é seguro fazer isso, especialmente em meio à alta de casos que o país enfrenta nas últimas semanas, e não sem antes fazer todos os investimentos necessários.
“A escola é muito importante, quase essencial, mas não podemos reabrir as escolas a todo custo. Fazer isso neste momento seria uma aventura”, afirma o infectologista Hélio Bacha.
A reabertura das escolas é questionada principalmente pelos representantes de profissionais de educação.
“Hoje, não há como ter um ambiente seguro”, diz a deputada estadual Maria Izabel Noronha (PT-SP), que é presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).
Crianças se infectam menos, mas transmitem menos?
Um dos principais argumentos de quem defende o retorno às escolas é que hoje se sabe que a covid-19 afeta menos as crianças.
Quando a pandemia começou, diz Paulo Telles, as escolas foram fechadas tendo em mente que o novo coronavírus poderia ser semelhante a outros vírus respiratórios, como o influenza, que causa a gripe.
As crianças costumam estar entre os mais afetados nos surtos de gripe. Mas a experiência mostrou até agora que elas respondem por uma proporção pequena dos casos e mortes por covid-19.
“As crianças se infectam de duas a cinco vezes menos do que os adultos e, quando são contaminadas, são assintomáticas ou têm sintomas leves”, afirma o pediatra.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), apenas 8,5% dos casos notificados são pessoas com menos de 18 anos, “com relativamente poucas mortes em comparação com outras faixas etárias”.
Mas, apesar da manifestação da doença não ser geralmente grave, casos críticos foram relatados. Assim como em adultos, ter condições médicas pré-existentes é um fator de risco.
“Mas as crianças não são, como a gente imaginava em março, as principais responsáveis pela disseminação da covid-19”, diz Luciana Becker Mau. O que ainda ainda não se sabe é exatamente por que isso ocorre.
Estudos apontam que a carga viral de uma criança que está infectada, ou seja, a quantidade de vírus que ela carrega no corpo, é muitas vezes igual ou mesmo superior à de adultos, diz Marcelo Otsuka.
Uma hipótese é que as crianças são menos suscetíveis à doença. Outra é que, como entre os mais jovens a covid-19 costuma ser mais leve, eles têm menos sintomas, como espirro, tosse e coriza.
“Esses sintomas respiratórios são os que mais levam à transmissão”, explica Otsuka.
Mas pode ser também porque elas simplesmente tenham ficado mais isoladas do que os adultos.
“E aí a gente não consegue saber a capacidade de transmissão das crianças, já que elas acabam pegando a doença de um adulto que trouxe o vírus para casa”, diz o infectopediatra.
Estudos são animadores, porém inconclusivos
Uma revisão de 32 pesquisas apontou que crianças e adolescentes com menos de 14 anos têm uma chance 48% menor de serem infectadas pelo coronavírus em comparação com quem tem mais de 20 anos. Mas aqueles com idades entre 14 e 19 anos têm a mesma probabilidade de adultos.
Os autores dizem haver evidências de que crianças e adolescentes têm um papel menor na transmissão do vírus, mas ressaltam que elas ainda são “fracas”.
Por fim, eles ressaltam que a maioria dos estudos analisados foram feitos quando medidas de distanciamento social vigoravam, o que pode ter afetado os resultados, assim como um esforço menor para rastrear os contatos feitos por pacientes com menos de 20 anos e uma testagem significativamente menor entre crianças.
Um outro estudo usou modelos matemáticos para analisar os dados de epidemias de seis países e apontou que pessoas com menos de 20 anos são 50% menos suscetíveis a serem infectadas do que aquelas com 20 anos ou mais.
“Consequentemente, concluímos que as intervenções destinadas a crianças podem ter um impacto relativamente pequeno na redução da transmissão”, escrevem os autores.
Mas eles advertem que novos dados coletados após a conclusão da pesquisa, publicada em junho, podem alterar estes resultados.
Ou seja, as pesquisas científicas sobre a covid-19 em crianças e adolescentes são animadoras, mas não são conclusivas e deixam margem para dúvidas sobre o real perigo envolvido na reabertura das escolas.
A OMS diz que mais estudos estão em andamento para avaliar o risco de infecção em crianças e compreender melhor a transmissão nesta faixa etária.
Escolas ficaram abertas em outros países
Os médicos à frente dessa mobilização apontam também que, mesmo com uma segunda onda de infecções em outros países, as escolas permaneceram abertas.
Eles ainda questionam a reabertura de outros setores da economia no Brasil enquanto as salas de aula continuam vazias.
“Na Europa, fechou tudo, mas não fecharam as escolas. Então, é bem difícil entender por que está tudo aberto aqui, mas as escolas não podem reabrir com a adoção de alguns protocolos”, critica Paulo Telles.
Com determinadas medidas, defendem estes médicos, é possível reduzir o risco de infecção tanto para os estudantes quanto para os profissionais que trabalham nestes locais.
Uma vez mais, eles indicam pesquisas que reforçam essa noção. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças da Europa (ECDC, na sigla em inglês) aponta, por exemplo, que as investigações de casos em ambientes escolares sugerem que a transmissão de criança para criança não é a principal causa de infecção.
“Se o distanciamento físico e medidas de higiene forem aplicadas, é improvável que as escolas sejam ambientes de propagação mais eficazes do que ambientes de trabalho ou lazer”, diz o ECDC.
O órgão afirma que a experiência de países europeus indicam que a reabertura de escolas não foi associada ao aumento da transmissão do coronavírus, embora ressalte há dados conflitantes sobre isso.
“As evidências indicam ser improvável que, isoladamente, o fechamento de instituições educacionais seja uma medida de controle eficaz para reduzir a transmissão ou que isso forneça uma proteção adicional à saúde das crianças”, afirma o ECDC.
Taxa de transmissão alta favorece surtos
Mas especialistas alertam que surtos podem ocorrer se as escolas forem reabertas enquanto a taxa de transmissão do vírus estiver alta.
Um episódio grave ocorreu em uma escola de Jerusalém, dez dias depois do retorno das aulas presenciais em Israel, em meados de maio. Ao todo, foram infectados 153 alunos e 25 funcionários, além de 87 parentes e amigos das pessoas afetadas.
Mas, onde a transmissão é baixa, a reabertura pode não representar um perigo tão grande, como mostra um estudo sobre a experiência do Estado de Nova Gales do Sul, na Austrália.
Entre julho e setembro, 39 casos foram confirmados em 34 escolas. Foram identificadas 3.284 pessoas que entraram em contato com os pacientes, mas apenas 33 casos de transmissão foram detectados.
A má notícia é que o Brasil atravessa uma crise muito pior do que a situação israelense na época (e, em relação à Austrália, nem se fala).
Em maio, Israel tinha cerca de 15 casos diários por cada 1 milhão de habitantes. O taxa brasileira é hoje de 203 casos a cada 1 milhão de habitantes, considerando a média móvel de casos.
A taxa de transmissão no Brasil medida pelo Imperial College, do Reino Unido, chegou a ficar em 1,30 no final de novembro, o maior índice desde maio.
Isso significa que àquela altura 100 pessoas infectadas contaminavam outras 130, o que aponta para uma progressão em escala geométrica da pandemia. Só quando o índice fica abaixo de 1 é possível dizer que a pandemia está sob controle.
Atualmente, a taxa é de 1,13, um nível ainda considerado alto. Neste contexto, o infectologista Hélio Bacha diz ser inviável reabrir as escolas.
“Não podemos reabrir as escolas só porque as crianças costumam ter uma doença leve. Vamos expor toda uma comunidade de profissionais da educação, porque hoje não há um compromisso das autoridades em garantir as condições mínimas para esse retorno”, afirma Bacha.
Alunos e professores correm risco em salas e transporte lotado
A reabertura das escolas só pode ocorrer quando a epidemia estiver estabilizada, defende o médico.
“E tem que negociar como isso vai ocorrer com os professores e outros trabalhadores, porque não vai adiantar nada reabrir as escolas se eles não forem trabalhar, como aconteceu na Itália”, diz Bacha.
Muitos profissionais de educação dizem que não se sentem seguros para voltar às escolas e questionam as condições em que isso vai ocorrer.
A deputada Maria Izabel Noronha dá como exemplo a rede pública estadual de São Paulo para explicar sua objeção ao retorno programado pelo governo do Estado para fevereiro.
“Existem cerca de mil salas de aula improvisadas, onde a circulação de ar é ruim. Temos salas lotadas, com 30, 40 alunos por turma. E, desde março, quando as escolas foram fechadas, não foram feitas reformas para readequar os ambientes escolares”, afirma Noronha, que é professora.
Ela diz ainda que não basta garantir a segurança das escolas, porque muitos alunos e professores precisa antes chegar até elas e, para isso, usam o transporte público.
“Há uma lotação no transporte público que propicia um aumento da transmissão. As pessoas vão se contaminar ali e levar o vírus para dentro da sala de aula”, diz Noronha.
Em anúncio feito na última quinta (17/12), o governo do Estado de São Paulo afirmou que manterá o plano de retorno gradual às aulas presenciais em 2021, considerando as escolas como serviço essencial. Em áreas de maior índice de contágio, o plano prevê que as escolas recebam até 35% de seus alunos. Nas áreas de baixo contágio, de 70% a 100% dos alunos.
“A escola não pode mais fechar. Neste momento de pandemia, as famílias precisam entender que é cada vez mais fundamental ter seus filhos frequentando a escola, para continuarem a aprendizagem e serem acolhidos em vários aspectos, principalmente emocionalmente”, afirmou o secretário estadual de Educação, Rossieli Soares.
No entanto, a opinião pública tem reservas quanto a isso: pesquisa do Datafolha apresentada nesta sexta (18/12) aponta que dois terços da população brasileira defende o fechamento de escolas como forma de conter a pandemia.
Um prejuízo que vai além da educação
Trata-se de uma questão urgente, porque o isolamento tem trazido outros prejuízos além dos pedagógicos.
“Tem sido observado um aumento de problemas físicos, como obesidade, e também mentais, como ansiedade, depressão e distúrbios psiquitátricos”, diz Luciana Becker Mau.
Uma pesquisa da Unicef, o braço da Organização das Nações Unidas dedicado à infância, aponta que 54% das famílias que moram com pessoas com menos de 18 anos relataram que algum adolescente teve algum sintoma ligado à saúde mental.
Além disso, 55% das famílias tiveram uma queda na renda domiciliar, e 8% dos entrevistados disseram que crianças e adolescentes que moram na mesma casa deixaram de comer por falta de dinheiro para comprar alimentos – a proporção chegou a 21% nas classes D e E.
E, uma vez que fora das escolas, muitas crianças e adolescentes não estão estudando, ao menos não como deveriam: 52% das famílias disseram que os alunos não receberam atividades escolares na semana anterior à pesquisa.
A representante da Unicef no Brasil, Florence Bauer, diz que o longo período com escolas fechadas e o isolamento social tem impactado profundamente a aprendizagem, a saúde mental e a proteção social de crianças e adolescentes.
Fonte: BBC Brasil